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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Lei Maria da Penha: e quem vai proteger os homens?

Apesar do título, não estou, de maneira alguma, questionando a necessidade da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha). De certo que o referido diploma legal, nos idos de 2006, veio para garantir a proteção daqueles que coabitam o mesmo lugar, que têm interdependência, que gozam de confiança recíproca.

Todavia, consabido é que, desde o nascedouro, a lei é popularmente conhecida como aquela que protege a mulher da brutalidade física e psíquica do homem. Não por outro motivo, aliás, levou o “nome” de Maria da Penha, nordestina que foi diariamente espancada pelo marido durante seis longos e sofridos anos.

Apesar de clara evolução do nosso ordenamento jurídico, que na esteira dos comuns crimes de violência doméstica que ocorrem Brasil afora, viu a extrema necessidade da existência de uma lei que punisse severamente o autor, a execução da Lei pela polícia e pelo Poder Judiciário muitas vezes atentam arbitrariamente à honra e à dignidade do suposto violentador, que é tratado como criminoso da pior espécime, ao arrepio dos mais diversos princípios constitucionais, v.g., presunção de inocência.



Cito, para ilustrar, um caso prático que vivenciei no escritório e, que por motivos óbvios do sigilo profissional e segredo de justiça, não menciono os envolvidos:


Fui procurado para atender aos familiares de um suposto autor do crime de violência doméstica física (art. 129, CP, c/c art. 20, Lei 11.340/06) que foi preso em flagrante delito. Constava no auto de prisão em flagrante que a suposta vítima procurou uma delegacia de polícia por volta de meia noite para “dar parte” do seu esposo, que a teria agredido fazendo abrir seu supercílio e, em ato contínuo, fugido do local para a sua casa. Os policiais, então, diligenciaram até a casa do suposto autor arrancaram-no da cama, lugar onde ele já estava a horas dormindo.


Logo em seguida o meu cliente foi levado para a delegacia onde foi autuado em flagrante delito. Colheu-se o depoimento da suposta vítima e dos dois policiais que atuaram na operação. Quanto ao depoimento dos policiais nada há o que se falar, visto que não presenciaram nenhum delito e tão somente realizaram a prisão. Hoje o suposto autor do crime está na penitenciária, morrendo de medo por não ser, de fato, um criminoso. O Magistrado deveria, à luz do que determina o artigo 310, I ou III, relaxar imediatamente a prisão por ausência de justa causa; ou conceder a liberdade provisória. Explico:


Como mencionado supra, o único indício existente que leva o Acusado à autoria do fato é o depoimento vitimário. Conforme cediço, nos crimes domésticos onde é impossível a vista de testemunhas, dá-se ao depoimento da suposta vítima um valor em excesso, propendendo, claro, sua própria proteção.


Contudo, ao apelo dos princípios constitucionais da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa, não pode o simples depoimento da vítima fundamentar a prisão do Acusado. Isso porque seria muito perigoso manter uma prisão provisória com prova tão precária. Aliás, prova não, mas início de prova.


A nosso ver, caberia, à autoridade policial investida da competência especial, averiguar a verdade dos fatos mediante investigação acerca do comportamento social das partes junto aos vizinhos e familiares. Certamente chegar-se-ia à conclusão do quão fantasioso, capcioso e mentiroso foi o alegado pela suposta vítima.


No presente caso a prisão se deu quando o acusado estava em sua residência dormindo. Ora, questiono, pois, a qualidade desse flagrante.


A prisão em flagrante mediante depoimento inventado e as acusações ocultas a que o Denunciado fora submetido até que tomasse ciência dos fatos contra si são não menos que as acusações secretas que Cesare Beccaria noticiou em sua obra e repudiadas por nossa Constituição Federal. Vejamos:
“As acusações secretas são um abuso manifesto, mas consagrado e tornado necessário em muitas nações, pela fraqueza de sua constituição. Tal uso torna os homens falsos e pérfidos. Aquele que suspeita um delator em outro vê nele logo um inimigo. Costumam, então, mascarar os próprios sentimentos; e o hábito de ocultá-los a outrem faz com que finalmente esconda-o de si mesmos.
(...)
Quem poderá defender-se da calúnia, quando esta se arma com o escudo mais sólido da tirania: o sigilo?”

Em dado momento assim preconizou Beccaria com maestria:
“Deve dar-se às testemunhas um crédito tanto menor quanto mais aumenta a atrocidade de um crime e mais inverossímeis as circunstâncias. Tais são, por exemplo, as acusações de magia e as ações gratuitamente cruéis. (...) Não se deve admitir com precipitação a acusação de uma crueldade sem motivos, porque o homem só é cruel por interesse, por ódio ou por temor. O coração humano é incapaz de um sentimento inútil; porque todos os seus sentimentos são proporcionais ao resultado das impressões que os objetos causaram sobre os sentidos.”


No caso em comento a única testemunha de acusação é a própria vítima. O depoimento por ela proferido atende apenas ao seu interesse e, por haver a possibilidade de não condizer com a realidade, não pode per si fundamentar uma prisão cautelar.


Plagiando o ilustre filósofo italiano acima citado, é necessário mais de uma testemunha, pois, negando o acusado o que a testemunha afirma, não há nada de certo e a justiça deve então respeitar o direito que cada um tem de ser julgado inocente. O fundamento do depoimento fantasioso está, justamente, na raiva que a suposta vítima possui do acusado pelo relacionamento frustrado existente entre ambos. Seu testemunho, infectado pela cólera e ira que lhe assolou, há de ser relativizado como bem doutrinado pelo pensador penal Beccaria e, a posteriori, levado em conta para responsabilização de denunciação caluniosa.


Ademais, salutar é refletir que, sendo o Direito Penal o soldado mais forte de que dispõe a República para a defesa do bem comum e a prisão cautelar o último dos meios para se garantir a ordem social, diante de tão precária prova, só se pode concluir pela necessidade da concessão de liberdade provisória, ainda que se apliquem outras medidas cautelatórias.


Houve, ainda, importante inovação legislativa que atinge principalmente as custódias cautelares, com o claro objetivo de se resguardar o direito dos inocentes e a dignidade humana de todos, ainda que suspeitos. Foi a Lei nº 12.403/11.


O legislador ordinário positivou o que o Supremo Tribunal Federal está exausto de propalar: que no processo penal a prisão antes do trânsito em julgado de sentença condenatória só tem lugar legitimamente quando presentes requisitos cautelares que apontem sua absoluta necessidade.


Como cediço, o direito penal moderno, conforme construção doutrinária e jurisprudencial, deve ser utilizado pelo Estado como último meio persuasório a pretender fazer com que o indivíduo mantenha sua conduta em consonância com o ordenamento jurídico. É, pois, a ultima ratio.


Como extrema ratio desta ultima ratio surge a prisão, ou seja, o encarceramento daquele sujeito sob o qual recai suspeita de ter cometido crime (no caso das prisões provisórias), ou contra o qual, após o devido processo legal, o Estado já tenha firmado convicção quanto à sua atuação criminosa (no caso de condenação transitada em julgado).


Note-se que a prisão se trata – em ambas as modalidades acima descritas – de uma medida de evidente caráter excepcional no ordenamento jurídico pátrio, em razão de princípios insculpidos na Carta Magna e de comandos concretizadores destes presentes na legislação ordinária.


De fato, o estado de inocência que deve imperar até o definitivo julgamento de um processo penal está consagrado no art. 5º, LVII, da CF/88, havendo, de resto, notória preocupação do Constituinte em demarcar rigidamente as hipóteses de cabimento da medida prisional (abarcando, aqui, a pena e a medida cautelar) e a forma de sua execução (art. 5º, XLV, XLVI, XLVIII, XLIX, L, LIV, LXI a LXVIII), tudo em consonância com o princípio maior da dignidade da pessoa humana positivado no art. 1º, III, da Lei Maior.


Assim, neste contexto, muitos magistrados já deixavam de decretar a prisão quando era possível uma medida alternativa que suprisse a contento as necessidades para que o processo gerasse uma prestação jurisdicional efetiva ao final.


Então o que fez o legislador ordinário foi positivar isso no artigo 319 do CPP elencando várias medidas cautelares que devem ser adotadas com prioridade sobre a prisão.


A prisão cautelar, ou seja, aquela aplicada antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, deve sempre, como o próprio nome indica, ter finalidade meramente de acautelar o processo ante determinadas situações concretas. Isto é, objetiva garantir o alcance de uma prestação jurisdicional efetiva, útil.


Assim, se o réu/investigado segue praticando crimes colocando em risco a "garantia da ordem pública", deve ser impedido; se coage testemunhas ou altera provas, de modo a se tornar inconveniente à instrução criminal, deve ser impedido; se o réu/investigado tem a intenção de se evadir para evitar a aplicação da lei penal, deve ser impedido.


Tudo que foi supramencionado como motivador da custódia cautelar resta afastado no caso outrora comentado. Ainda assim, o douto Magistrado não concedeu a liberdade provisória ao receber aos autos de prisão em flagrante, como determina o artigo 310, III, do Código de Processo Penal.


E o artigo 312 do CPP aduz que a prisão preventiva pode (havendo outras possibilidades) ser o meio de impedir o réu/investigado a praticar tais condutas, por colocarem em risco a própria efetividade/utilidade do processo.


Ocorre que se for possível impedir o réu/investigado com outros meios menos drásticos, esses meios são os que deverão ser utilizados, consoante expresso no art. 282, §6º, do CPP.


A prisão surge, então, apenas como a última alternativa cautelar posta à disposição do Estado para salvaguardar a utilidade do processo.


Esses meios que gozam de prioridade perante a prisão são medidas cautelares diversas, tendo o legislador elaborado um rol delas no artigo 319 do CPP.


A opção por determinada medida cautelar dependerá da sua adequação ao caso concreto, devendo o magistrado sempre preferir aquela que seja suficiente ao objetivo colimado e que imponha o menor gravame possível ao réu/investigado. Deve-se aplicar, pois, o princípio da proporcionalidade em tal determinação.


Veja-se que este rol não pode ser tido por taxativo, pois no caso concreto outra medida pode se mostrar mais adequada a acautelar o processo, devendo apenas respeitar a integridade física e psíquica do réu/investigado.


Há agora a positivação de uma escala a ser observada pelo magistrado, só sendo cabível a prisão se não se mostrar adequada uma medida menos drástica ou se essa, após cominada, restar frustrada (arts. 282, §§ 4º e 6º, 310, II, 312, parágrafo único, CPP).


Contudo, naquele caso que utilizamos como exemplo, nada do que foi aqui observado foi efetivamente aplicado. Destarte, privilegiou-se um depoimento fantasioso em detrimento da dignidade do ser humano, que agora vagueia pelas penitenciárias da cidade sofrendo pela sua candura, o que é inaceitável.


Só posso concluir, portanto, que apesar da Lei Maria da Penha representar verdadeira evolução à nossa sociedade, a sua aplicação pelas pessoas competentes para tanto acaba por deturpar sua finalidade e ferir de morte os princípios constitucionais que deveriam caminhar ao seu derredor.


Ademais, com o fito de continuar essa discussão, cito o artigo “Lei Maria da Penha: breves considerações sobre ‘igualdade material’”. Acesse-o aqui.

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